A instalação das armações de pesca da baleia em Santa Catarina no século XVIII / Fabiana Comerlato

A instalação das armações de pesca da baleia em Santa Catarina no século XVIII – Fabiana Comerlato

As armações localizadas no litoral Brasil foram empreendimentos coloniais dedicados à pesca da baleia e ao beneficiamento das partes econômicas deste cetáceo. O nome “armação”, presente na toponímia em muitas regiões do litoral brasileiro, advêm na instalação destas unidades produtivas ou simplesmente da realização da pesca da baleia, em que era necessário “armar-se” para o confronto com o ‘grande peixe do mar’.

O primeiro contrato para a implantação de uma armação de baleias na Ilha de Santa Catarina foi concedido a Tomé Gomes Moreira. Porém, a primeira armação, contrariando o documento, não foi erguida na Ilha de Santa Catarina, mas em terra firme como observa Walter Álvares (1938: 415). Esta escolha talvez estivesse embasada no levantamento feito em 26 de agosto de 1721 por Manoel Gonçalves d’Aguiar (Sargento-mór da Praça de Santos), em resposta ao Capitão General da Cidade do Rio de Janeiro e Capitanias do Sul, Antonio de Brito Menezes:

Não ha duvida, que ha na dita Ilha bastante peixe para os moradores que nella morão (…) No que respeita a pescaria das baleias, respondo, que não tem a dita Ilha capacidade alguma para isso; porque pelos baixos que tem não entrão baleias nella. Só no Rio de S. Francisco se poderá fazer uma bôa pescaria, e melhor, e mais suave que a do Rio de Janeiro. A mesma se póde fazer em Santos com não menos commodidade. (Taunay, 1936: 640)

A escolha da primeira armação provavelmente esteve condicionada as vantagens de poder estar próxima à Fortaleza de Santa Cruz na Ilha de Anhatomirim. A Armação da Piedade situava-se no continente na entrada da barra norte, em uma enseada calma, bem em frente da fortaleza a quase 6km de distância desta, atualmente município de Governador Celso Ramos. O local da armação era ideal para a prática do escoamento da produção por estar bem na entrada da barra norte, ser seguro pela proximidade com a maior fortaleza de Santa Catarina e possuir uma situação que possibilitava o rápido deslocamento para fora da baía quando da pesca.

Segundo Auguste Saint-Hilaire, a Armação da Piedade foi fundada em 1746, tendo sua construção sido iniciada provavelmente em 1743. Em virtude de suas grandes dimensões, a maior armação do sul do Brasil, teria demorado três anos para ficar pronta (1978: 162).

Esta armação possuía um conjunto de edificações bastante expressivo para a época de sua construção, contando com: trapiche, capela, engenho de azeite, casas dos tanques, armazéns, ferraria, casa-grande, casa dos feitores, companha dos baleeiros, senzala, telheiro do escaler, casa de depósito da lenha, ditta dos cabos, ditta do panno, telheiro para a construção, casa de hospital e botica, cariocas e engenhos. Posteriormente, foram construídos um quartel para a tropa e casa para os oficiais.

 

 

Planta da Armação da Piedade do Intendente da Marinha José Mario Pinto, datada de 1829. Reprodução da original na Enciclopédia de Santa Catarina, vol. 23, antigo acervo do Almirante Carneiro. Setor de Santa Catarina (obras raras) da Biblioteca Central da UFSC.

 

 

O engenho de frigir desta armação era um dos mais imponentes, possuindo vinte caldeiras de ferro ao todo. Esta armação tinha três casas de tanques com treze reservatórios, totalizando 6329,50m3 de capacidade de armazenamento de óleo. A Planta de José Mario Pinto feita em 1829 nos mostra apenas uma das três casas de tanques. Esta armação possuía ainda um tanque de lavar barbatanas, feito de pedra e cal em forma de circunferência, e um tanque de salga (Ellis, 1969: 64-66).

Em relação às residências, a companha dos baleeiros estava disposta em quatro grandes estabelecimentos ou casas, subdivididas em moradias, no lado leste da praia. Em oposição espacial, ficava a casa-grande – um sobrado com um quintal murado de tijolos. Atrás das casas dos tanques, existiam as senzalas compostas de duas quadras de residências divididas em 44 casas e dois armazéns anexos. E, por fim no canto oeste da praia, além da igreja seguiam-se a casa do hospital e botica, era dividida em cinco dependências, um corredor, uma varanda e duas cozinhas (Ellis, 1969: 77-79).

As condições do contrato foram estabelecidas pelo Conselho Ultramarino a Tomé Gomes Moreira, em que lhe eram oferecidas uma série de garantias e algumas restrições de mercado. As vantagens eram: poder comercializar a produção na Ilha de Santa Catarina e Lisboa, podendo em caso urgente comercializar no Rio de Janeiro por um preço de mercado; não pagar subsídios à Capitania e impostos para entrar nos portos de Santos e do Rio de Janeiro; conseguir terreno para a implantação da armação por mediação do Governador do Rio de Janeiro que cedia a terra se devoluta ou fazia ser vendida por preço justo; se necessário precisasse (como era comum em outras armações) poderia obrigar os ministros dos distritos a convocar pescadores, sendo estes devidamente remunerados.

A iniciativa particular quando adquiria a concessão real para a pesca da baleia, pagava por este direito de exploração exclusiva um preço determinado. Era do concessionário a tarefa da instalação completa da armação e de sua manutenção, sem qualquer dispêndio da Coroa. A propriedade e todos os bens, incluindo escravos, no final de cada contrato tornavam-se patrimônio da Coroa Portuguesa. A mesma poderia renovar o contrato vencido ou conferir o direito de uso e posse a outro arrendatário.

O contrato conferia a possibilidade de altos lucros aos contratadores, nas palavras de Álvares eram verdadeiras obras de tolerância (1938: 415). O período de maior produção baleeira foi entre 1765 e 1789, em mãos da família Quintela, quando se estabeleceu o “Contrato da Pescaria das Baleyas nas Costas do Brasil”, apoiado pela política do Marquês de Pombal (Ellis, 1969: 156-157). O investimento de capitais na ampliação, na construção de núcleos baleeiros, e na aquisição de instrumentos de trabalho, embarcações e escravos caracterizam este momento de maior desenvolvimento do monopólio da pesca da baleia no Brasil (Ellis, 1969: 156).

Neste contrato, em Santa Catarina temos a construção da Armação de Sant’Ana de Lagoinha ou das Lagoinhas (1772), da Armação de São João Batista de Itapocoróia (1778), e posteriormente, da Armação de São Joaquim de Garopaba (1793) e da Armação de Imbituba (1796).

O segundo núcleo baleeiro, da Lagoinha, foi fundado em 1772 na orla da praia da Armação do Pântano do Sul, com capela em devoção à Sant’Anna, sul da Ilha de Santa Catarina. A Ilha do Campeche serviu como posto de emergência, com um tanque e provável engenho de frigir. Esta armação era composta pelas seguintes estruturas: casa dos tanques (capacidade para 1697,50m3 de óleo), engenho de azeite, casa-grande, armazém, senzalas, capela, companhas dos baleeiros e engenho de farinha.

A capela da armação, como era comum, possuía ao lado, cemitério fechado com muro de pedra e cal. A casa-grande tinha duas frentes, uma voltada para o mar e outra para o engenho e tanque. Esta dispunha de três salas, quatorze quartos, três corredores, varanda e cozinha (Ellis, 1969: 77). Na Planta da Armação e Fazenda de Santa Anna da Lagoinha, a casa do administrador e o armazém estavam num mesmo prédio. Nas outras armações, o armazém também ficava próximo, ou na própria casa-grande como dependência dos fundos.

Planta da Armação e Fazenda de Santa Anna da Lagoinha. Extraído: Piazza, 1983: 200.

A companha dos baleeiros foi construída em uma pequena ilhota na ponta da armação, hoje interligada por molhe, eram dez casas com um armazém para lanchas que ocupavam uma área de 317m2 (Ellis, 1969: 79). Esta edificação estava na extremidade da armação, pois os pescadores tinham que ficar o mais perto possível do mar, em um local de fácil deslocamento.

O sítio da fazenda, conforme planta mencionada anteriormente, ocupava quase toda a Lagoa do Peri, incluindo os morros da Cachoeira Grande, do Saquinho e do Peri de Cima. Era uma área que possuía uma reserva de água potável e uma cobertura vegetal dos morros potencialmente utilizável para fazer lenha. Esta armação destacou-se com a plantação de 7.000 pés de café (Ellis, 1969: 196).

A Armação de São João Batista de Itapocoróia estava localizada no atual município de Penha, litoral norte de Santa Catarina. A praia de Armação de Itapocoróia, com 800 metros de extensão, possui formato semicircular e na sua parte mais ao sul, um pouco antes da Ponta da Cruz, foi erguido o núcleo baleeiro.

Com a invasão espanhola da Ilha de Santa Catarina em 1777, as armações da Piedade e da Lagoinha ficaram sob o controle daquela nação. Os monopolistas portugueses, pensando em não paralisar a produção, instalaram uma nova armação mais ao norte da Capitania de Santa Catarina. A enseada de Itapocoróia foi escolhida para abrigar a nova armação pela sua localização estratégica, entre São Francisco do Sul e a Ilha de Santa Catarina. (Souza & Serpa Filho, 1995: 18-22).

A Armação de Itapocoróia foi fundada em 1778, já existindo no local a capela de São João Batista (concluída em 1759) e um pequeno arraial. Além do espaço produtivo possuía vasta chácara, eram três lotes a leste das edificações da praia com 17,50km2 de área, ou seja, as áreas do Morro do Pires ao Morro da Galheta (Ellis, 1969: 80-81). Esta área era utilizada principalmente para a produção de lenha, tendo sido derrubada sua vegetação primária. Na parte mais setentrional da armação ficava a Ponta da Vigia, local como o nome sugere de observação e avistagem das baleias.

As edificações que faziam parte desta armação eram: capela, armazém do paiol, carioca, casa-grande, companha dos baleeiros, senzala, casas dos tanques (capacidade para 4153,60m3), engenho de frigir e trapiche. A distribuição das estruturas assemelha-se a Armação de Garopaba, com a capela, a casa-grande, casa do capelão e companha dos baleeiros construídas em patamar mais elevado (Saint-Hilaire, 1978: 162).

Uma importante referência é a gravura do pintor francês Jean Baptiste Debret de 1827 que mostra a Armação de Itapocoróia com seus espaços marítimo, produtivo mercantil e o de subsistência, representado pela extensa área verde com costões e morros. No espaço marítimo vemos duas baleeiras, cada uma transportando uma baleia. Na linha da praia, no canto direito da gravura, a primeira edificação seria a casa dos dois tanques, tendo ao lado o engenho de frigir e atrás deste a casa dos sete tanques. No centro do núcleo baleeiro está a igrejinha com uma quadra aberta em que se encontra um cruzeiro. A edificação do lado esquerdo da gravura era provavelmente a companha dos baleeiros.

 

 

 

A Armação de São Joaquim de Garopaba estava localizada no atual município de Garopaba, litoral sul de Santa Catarina. A armação foi construída junto ao pé do Morro de Garopaba fazendo parte da freguesia da Enseada de Brito, sendo fundada em 1795.

A partir da gravura do pintor francês Jean Baptiste Debret podemos entender a espacialidade da Armação de Garopaba. Toda a enseada foi desenhada e no meio desta aparecem, ao lado de uma pessoa, quatro fragmentos ósseos de baleia.Do lado direito da gravura temos o núcleo baleeiro, aparecendo, no primeiro plano, temos duas edificações interligadas. Estas correspondem ao engenho de frigir e a casa dos tanques. Ambas possuem as mesmas dimensões, dois pavimentos e telhado em quatro águas. Sua localização está confirmada também pelo Plano da Armação de Garopaba de 1799 (Ellis, 1969: 1829).

Gravura da Armação de Garopaba, Debret. Reprodução fotográfica: José La Pastina Filho. Original: Museu Castro Maya, RJ.

Ao lado do engenho de frigir está o trapiche provavelmente de madeira e o cabrestante na sua ponta, próximo foi representado uma embarcação com dois mastros puxando uma baleia.
Em um patamar mais alto, no canto direito da gravura, aparecem a capela com cruzeiro na frente, a casa-grande com quintal murado e um alinhamento de casas. Abaixo deste alinhamento de edificações estão algumas casas geminadas de feitio mais simples com telhado em duas águas.

A Armação de Sant’Anna de Imbituba estava localizada, onde hoje está situado o porto do município de Imbituba, no litoral sul de Santa Catarina. Com a construção do porto, as edificações foram demolidas ou soterradas. Esta armação ficava junto a Ponta de Imbituba, tendo sido fundada em 1796, funcionando como suplemento da Armação de Garopaba, era a mais meridional e a menor de todas (Saint-Hilaire, 1978: 194). Nesta época, a pesca da baleia já estava sofrendo os reflexos da pesca praticada por embarcações de outras nações na costa sul-brasileira.

A armação era formada pelas seguintes estruturas: casa dos tanques (capacidade para 574m3 de óleo), engenho de azeite, casas do administrador, companhas dos baleeiros, senzalas e casas para o destacamento. Não possuía capela, sendo assistida pela capela da Vila Nova de Santana, fundada freguesia em 1755.

“Plano da Armação e inseada de Imbetuba mandado tirar pelo Governador interino João Alberto de Miranda Ribeiro pello Tenente Manoel Jozé Xavier Palmeirim no Mez de Maio de 1799”. Extraído: Ellis, 1969: 129. Original: Mapoteca do Arquivo do Exército, RJ.

No Plano da Armação de Imbituba de 1799, copiado em 1828, aparece ainda o local aonde os navios fundeavam, um reduto com quatro peças de ferro, o local onde ficavam as lanchas e do cabrestante (Ellis, 1969: 128-129). Analisando este documento percebemos que o local de implantação da armação está protegido do vento forte (sul). Para Saint-Hilaire, a enseada oferecia bom ancoradouro (1978: 193). A enseada de Imbituba foi um local que se destacou por suas boas condições de aportar e sair para pesca, enquanto as outras praias adjacentes já são de mar batido não possuindo as condições ideais necessárias. Isto tanto é verdade, que o porto de Imbituba foi fixado sobre os terrenos desta armação.

Outro ponto, em comum com as outras armações é a localização conjunta do engenho de frigir e as casas dos tanques, uma ao lado da outra. As casas do administrador aparecem ao lado da casa do engenho, distribuição que favorecia o controle do processo produtivo. Provavelmente uma das três casas do administrador era utilizada como depósito e armazém.
O contexto espacial das armações mostrou diferentes formas de exploração do ambiente, adaptando-se a morfologia do terreno. Entretanto, foi possível verificar que as edificações sempre estavam agrupadas por função, no caso das edificações que serviam de moradia a distinção era sócio-cultural. Em um nível semi-macro podemos distinguir três espaços: o espaço produtivo mercantil, onde o “coração” da armação era o engenho de frigir e a casa de tanque; o espaço de subsistência, que constituía as roças, áreas de mata e engenhos; e, por último, o espaço marítimo, local da prática da pesca da baleia.

No final do século XVIII, por questões macro-econômicas, a pesca da baleia entrou em declínio, sendo o sistema do monopólio extinto através do Alvará de 18 de maio de 1798, podendo cada um ou por si ou em sociedade preparar a pesca da baleia em qualquer parte da costa e em alto mar. O fim do último contrato e o Alvará de 24 de Abril de 1801 deixou livre a pesca da baleia aos arrendatários interessados e permitiu a venda as armações (à vista ou a prazo), sem privilégio algum. Na falta de interessados a Junta da Fazenda administraria as armações e seus escravos (Ellis, 1969: 160-161).

Referências Bibliográficas
ÁLVARES, Walter. Histórico da pesca da baleia no Brasil. Revista Mensário Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, v. 2, t. 3, p. 411-417, 1938.
ELLIS, Miriam. A baleia no Brasil Colonial. São Paulo: Melhoramentos, 1969.
PIAZZA, Walter Fernando. Santa Catarina: sua história. Florianópolis: UFSC/Lunardelli, 1983.
SAINT-HILLAIRE, Auguste. Viagem a Curitiba e Província de Santa Catarina. Belo Horizonte: Itatiaia, 1978 [1820].
SOUZA, Cláudio Bersi de Souza & SERPA FILHO, Gentil Abílio. Penha: A História de Todos. Florianópolis: Paralelo 27, 1995.
TAUNAY, Affonso E. Noticias Praticas da Costa e Povoações do Mar do Sul. In: Em Santa Catharina Colonial. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1936.

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