Núcleo de Estudos Açorianos – 30 anos de história / Joi Cletison

 

Núcleo de Estudos Açorianos – 30 anos de história (1984 a 2014)

Joi Cletison

Historiador

Diretor do Núcleo de Estudos Açorianos

Universidade Federal de Santa Catarina

Após a dissolução da União Ibérica no ano de 1640, começou a disputa por terras no Brasil Meridional. Portugal e Espanha assinam o Tratado Ut possidet e começa a corrida das duas coroas para ocupar este território no Brasil Meridional. Portugal cria a Capitania de Santa Catarina em 1738. Em 1746 foi publicado nos Açores o Edital Régio convocando casais açorianos para migrarem para o Sul do Brasil.

A saga dos colonizadores AÇORIANOS, que em meados do século XVIII chegaram ao Sul do Brasil e deixaram sua marca indelével na cultura regional, destaca-se como uma das mais importantes operações de transferência de população realizada pelo Império Português em toda a sua história.

Num curto período de oito anos (1748 a 1756) foram transportados para a Ilha de Santa Catarina, litoral catarinense e para o Rio Grande do Sul, mais de 6.000 açorianos, mesclados de alguns madeirenses e portugueses continentais. Estes ilhéus foram responsáveis pela efetiva ocupação da nossa costa atlântica e hoje temos 45 municípios do litoral que tem como base cultural o Arquipélago dos Açores.

Para um Arquipélago que possuía uma população de pouco mais de 140.000 habitantes (1745), distribuídos em nove ilhas – Santa Maria, São Miguel, Terceira, Graciosa, São Jorge, Faial, Pico, Flores e Corvo –, a saída de um considerável número de pessoas causou um forte impacto populacional para muitas vilas dos Açores, principalmente na região central, que pediu providencias à Coroa Portuguesa para estancar a sangria populacional.

Tinham preferência de embarque no porto de Angra do Heroísmo, Ilha Terceira/Açores, as famílias já constituídas, ou seja, pai, mãe e filhos.

Era a estratégia da Coroa Portuguesa a migração em casais para o Sul do Brasil, portanto, o esquema de famílias constituídas funcionou muito bem.

A migração em “casais” colaborou para permanecia nos locais onde foram assentadas, e foi, com certeza, a maior contribuição para a manutenção desta identidade cultural em terras tão distantes e diferentes. Estas famílias trouxeram consigo a sua cultura, seu modo de ser e seu saber fazer, sua religiosidade, suas lendas, crenças e mitos.

Aqui, aqueles que vieram, reproduziram em famílias o modo de vida que tinham nos Açores, as formas de trabalhar a terra, construir suas casas, produzir suas roupas e utensílios, preparar seus alimentos, cultuar sua religiosidade e, também, o seu modo de se divertir com as danças e músicas.

Passados mais de 267 anos do processo migratório, o litoral catarinense ainda mantém fortes traços de originalidade de uma cultura multissecular que foi implantada no século XVIII pelos colonizadores açorianos. A dinâmica sociocultural e demográfica do imigrante açoriano contribui de forma decisiva para as feições dos padrões culturais da região litorânea catarinense, pois hoje mais de quarenta cidades mantêm um referencial da cultura açoriana na nossa costa atlântica.

A expansão horizontal desta população ao longo da costa catarinense e fundo dos vales litorâneos influenciou na construção de uma identidade regional com forte matriz cultural de origem açoriana. Claro que ao logo deste período esta cultura sofreu influências de outras culturas, como a indígena, a afrodescendente e também a dos alemães, italianos e poloneses que chegaram um século depois. Mas podemos afirmar, com muita certeza, que a identidade cultural do litoral catarinense tem a herança açoriana.

Para caracterizar esta cultura do litoral catarinense usamos a expressão, criada pelo historiador Vilson Farias, “cultura de base açoriana”. Cultura esta fortemente marcada pela religiosidade que perpassa pelo folclore, lendas e mitos, literatura popular, hábitos e costumes, artesanato, arquitetura, brincadeiras infantis, até mesmo na gastronomia originária no Arquipélago do Açores.

O Núcleo de Estudos Açorianos da UFSC em seus 30 anos de atuação é o maior responsável pela salvaguarda destas tradições, pois ao longo deste período trabalhou com a investigação destas heranças culturais, principalmente atuando na valorização, divulgação e preservação deste legado cultural.

Para falarmos da história do NEA, voltamos ao I Congresso Catarinense de História Catarinense realizado de 5 a 12 de outubro de 1948, pois foi a primeira proposta de reconhecer o valor da cultura herdada dos imigrantes açorianos. Durante o congresso se faz a comemoração dos 200 anos da chegada dos açorianos em Nossa Senhora do Desterro, na Ilha de Santa Catarina. Participaram deste evento reconhecidos pesquisadores do Brasil e Portugal debatendo a temática da epopeia açoriana no Brasil Meridional. Dentre eles podemos citar alguns nomes aqui de Florianópolis como Henrique da Silva Fontes, Nereu do Vale Pereira, Oswaldo Rodrigues Cabral e Walter Fernando Piazza.

Em meados dos anos 1980, depois de passados mais de trinta anos do I Congresso de Historia Catarinense, volta-se a falar com muita força nos açorianos em Santa Catarina, e é criado o Núcleo de Estudos Açorianos da Universidade Federal de Santa Catarina (www.nea.ufsc.br). O NEA foi criado no ano de 1984 (Portaria 0483/GR/1984) com objetivo de fazer investigação sobre a epopeia açoriana no Sul do Brasil.

A criação do NEA começa com um movimento de vários pesquisadores e estudiosos da temática açoriana. Na UFSC estávamos na gestão do professor Ernani Bayer, que, com uma visão de futuro, decide encampar este desafio e convida vários professores para discutir a temática açorianista dentro da academia.

Surge a decisão de assinar um protocolo de cooperação com a recém-criada Universidade dos Açores. O professor Ernani Bayer se empenha pessoalmente nesta missão.

Em 5 de abril de 1984 recebíamos aqui na Universidade Federal de Santa Catarina o professor Antônio Machado Pires, então reitor da Universidade dos Açores, para, em conjunto com o reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, professor Ernani Bayer, firmarem o protocolo de cooperação e intercâmbio.

Coube ao então reitor da UFSC, professor Rodolfo Joaquim Pinto da Luz assinar a Portaria Nº 483/GR/1984, no dia 5 de setembro de 1984, com isso estava então criado o Núcleo de Estudos Açorianos da Universidade Federal de Santa Catarina. Registramos aqui um agradecimento muito especial aos reitores da UFSC: Ernani Bayer e Rodolfo Joaquim Pinto da Luz, pela coragem e ousadia de trazer para a academia a temática açoriana, pois foi a primeira vez que conseguimos reunir vários intelectuais para pesquisarem e trabalharem esta temática dentro de uma Universidade Federal.

O departamento de Sociologia da UFSC convidou alguns estudiosos para fazerem parte do primeiro grupo de pesquisadores sobre cultura açoriana na Universidade, o embrião do NEA, dentre eles podemos citar: Carololina Galloti Koening, Celestino Sachet, Doralécio Soares, Franklin Casces, Luís Carlos Halfpap, Nereu do Vale Pereira, Osvaldo Cabral, Vitorino Seco, Vilca Merisio, Vilson Farias e Zuleika Lenzi.

Nas últimas décadas do século XX assistiu-se, em razão de múltiplos fatores, a um processo acelerado de transformação dos padrões socioculturais das populações litorâneas. Tais transformações produziram um distanciamento progressivo dos descendentes de açorianos (7ª e 8ª gerações) da cultura de origem e das tradições. As dificuldades em manter valores culturais tão originais se tornou um verdadeiro desafio diante da expansão do turismo balneário na região e do avanço da mídia televisiva, que introduziu novos valores culturais e apelos mercadológicos, colocando em risco de desaparecimento os tradicionais valores culturais regionais.

Então, o que fazer?

Em 1992 assume o Núcleo de Estudos Açorianos da UFSC um grupo de idealistas que ousou romper com os muros da universidade, propondo ações interativas, envolvendo pesquisadores universitários, professores do ensino secundário, administrações públicas e privadas, numa verdadeira cruzada em defesa da cultura de base açoriana. Pesquisar, orientar, interagir culturalmente, promover eventos e capacitar professores, pesquisadores e integrantes de grupos culturais locais, e orientar projetos de revitalização cultural foram ações que provocaram verdadeira revolução no litoral catarinense. Agora no Núcleo de Estudos Açorianos fazemos investigações, mas com o compromisso de devolvê-las à comunidade pesquisada.

Iniciamos no final da década de 1990 o Mapeamento da Cultura Açoriana no litoral catarinense: um projeto multidisciplinar, interinstitucional e permanente, que pretende agir de forma integrada nos campos da educação, cultura e turismo, buscando tornar a prática de valores culturais, não apenas simbólica, mas concreta, e que permita às comunidades usufruírem seus próprios valores.

Com esse projeto, o NEA tem atuado sistematicamente ao longo do litoral catarinense realizando a capacitação de professores da rede municipal e estadual de ensino fundamental e médio para serem os agentes do mapeamento. Hoje temos 85% do território mapeado.

A coordenação deste trabalho à frente do Núcleo de Estudos Açorianos, entre 1992 e 2000, foi do professor Vilson Francisco de Farias, e teve a participação fundamental de Acyr Osmar de Oliveira, Ana Lúcia Coutinho, Eugênio Lacerda, Francisco do Vale Pereira, Gelci José Coelho, Jaecir Monteiro, João Lupi, Joi Cletison Alves, Nereu do Vale Pereira, Sileide Lisboa, e dezenas de outros colegas que ainda integram o Conselho Deliberativo do Núcleo de Estudos Açorianos. No ano de 2000 assumiu a coordenação do NEA, o historiador Joi Cletison, que permanece até os dias de hoje.

Desde as primeiras reuniões, no início dos anos de 1990, até os dias atuais, foram realizados centenas de cursos de capacitação, envolvendo milhares de pessoas, especialmente professores que atuam no ensino fundamental e médio.

Festas em prol da valorização e reoxigenação da cultura herdada dos açorianos foram realizadas, tornando-a referencialmente regional. Dezenas de grupos folclóricos e práticas culturais diversas foram revitalizadas. Esta dinâmica, que já dura mais de duas décadas, continua assombrando o meio universitário, pois se mantém em plena ação, liderado por um Conselho Deliberativo composto por representantes de mais de 60 instituições com representação do litoral de Santa Catarina. Hoje atuamos, em 45 cidades, com uma população de mais 1,5 milhão de habitantes localizados ao logo de 600 quilômetros de costa atlântica.

Nestes trinta anos de história, o NEA organizou várias Semanas Acadêmicas de Estudos Açorianos, 1º Congresso Internacional das Festas do Espírito Santo, 1º Encontro Sul Brasileiro de Comunidades Luso-Açorianas, Colóquio comemorativo aos 260 anos de Herança Açoriana.

Incentivamos a criação de vários monumentos homenageando a presença açoriana no estado catarinense, incentivamos também a publicação de centenas de livros e produção de vários documentários sobre a temática açoriana.

Em 1994 criamos a AÇOR – Festa da Cultura Açoriana de Santa Catarina, um evento rotativo, que a cada ano acontece em uma cidade diferente do litoral de Santa Catarina. Nos três dias da festa concentramos em um mesmo local o que temos de mais original da herança açoriana no folclore, gastronomia, religiosidade e no saber fazer. Durante o ano de realização da festa, o NEA/UFSC, faz um trabalho de capacitação junto aos professores da rede municipal, no sentido de valorizar e preservar a identidade cultural açoriana na cidade sede do AÇOR.

No ano de 2015, em sua 22ª Edição a Festa da Cultura Açoriana de Santa Catarina (AÇOR), que acontecerá de 2 a 4 de outubro, na cidade de Bombinhas, nós já realizamos a primeira etapa da capacitação e contamos com a participação de 342 professores da rede municipal de ensino. A segunda etapa acontecerá ao longo deste ano nas unidades de ensino do município de Bombinhas.

No ano de 1996, o Conselho Deliberativo do Núcleo de Estudos Açorianos da Universidade Federal de Santa Catarina criou o Troféu Açorianidade, com objetivo de reconhecer e valorizar o trabalho de instituições, pessoas e empresas em prol da cultura de base açoriana do estado de Santa Catarina. Com este troféu, que é entregue anualmente, o NEA tem procurado reconhecer a dedicação destas pessoas e instituições à causa da cultura açoriana. Anualmente são entregues dez troféus. Nove deles são nominados pelas nove ilhas do Arquipélago dos Açores. O décimo troféu leva o nome da Ilha de Santa Catarina que carinhosamente chamamos de décima Ilha do Arquipélago dos Açores.

Na sede do NEA mantemos um espaço cultural com exposições permanentes da temática açoriana, e temos uma biblioteca com mais de 1.500 títulos (livros, músicas e documentários) disponíveis à comunidade em geral para pesquisas e consultas, muitos destes títulos inéditos no estado. Registramos aqui o nosso agradecimento à Direção Regional das Comunidades do Governo dos Açores, que tem feito sistematicamente doações de livros à biblioteca do NEA.

Nestes longos anos de atuação o Núcleo de Estudos Açorianos tem mantido convênios com o Governo Regional dos Açores, e com a Universidade dos Açores, e com outras instituições no continente português. Estes convênios têm proporcionado vários intercâmbios de pesquisadores, grupos folclóricos, estudiosos, artistas e artesões. Também temos intermediado o Projeto Cidades Irmãs geminando cidades catarinenses a cidades açorianas.

Nestas três décadas de existência, o NEA/UFSC tem oportunizado centenas de pesquisas e orientado muitas teses, dissertações e trabalhos de conclusão de cursos sobre a temática açoriana. Hoje trabalhamos em parcerias com vários departamentos de ensino da Universidade Federal de Santa Catarina em ações no ensino, pesquisa e extensão.

O papel do Núcleo de Estudos Açorianos, da Universidade Federal de Santa Catarina, liderando as ações no litoral catarinense, em parceria com o Governo da Região Autônoma dos Açores, é uma das únicas experiências que se conhece mundialmente de parcerias interinstitucionais, independentemente de cores partidárias e de níveis sociais, em prol da defesa e valorização da cultura popular, numa área de 15.000 quilômetros quadrados, com a extensão de 600 km de costa atlântica, onde vivem mais de 1,5 milhões de habitantes, distribuídos em 45 municípios que ainda mantêm a CULTURA DE BASE AÇORIANA.

Hoje, três décadas depois, o orgulho pela identidade cultural de origem açoriana se tornou um forte componente regional, produzindo um verdadeiro milagre de revitalização cultural, com a retomada de grupos folclóricos e valores culturais em risco de desaparecimento.

O amor e a persistência são forças que movem estes heróis em defesa da cultura popular de base açoriana de Santa Catarina. Parabéns a todos nós, que nos sentimos com identidade cultural açoriana.

Ilha de Santa Catarina, outono de 2015.